sábado, 3 de março de 2012

Érico Veríssimo, em Solo de Clarineta

O meu amigo mais íntimo é o sujeito que vejo todas as manhãs no espelho do quarto de banho, à hora onírica em que passo pelo rosto o aparelho de barbear. Estabelecemos diálogos mudos, numa linguagem misteriosa feita de imagens, ecos de vozes, alheias ou nossas, antigas ou recentes, relâmpagos súbitos que iluminam faces e fatos remotos ou próximos, nos corredores do passado - e às vezes, inexplicavelmente, do futuro - enfim, uma conversa que, quando analisamos os sonhos da noite, parece processar-se fora do tempo e do espaço. Surpreendo-me quase sempre em perfeito acordo com o que o Outro diz e pensa. Sinto, no entanto, um pálido e acanhado desconforto por saber que existe no mundo alguém que conhece tão bem os meus segredos e fraquezas, uns olhos assim tão familiarizados com a minha nudez de corpo e espírito. Talvez seja por isso que com certa frequência entramos em conflito. Mas a ridícula e bela verdade é que no fundo, bem feitas as contas, nós nos queremos um grande bem. Estamos habituados um ao outro. (...)
Eu gostaria de simplificar o problema de meu "temperamento", apresentando-me como a manifestação duma dicotomia, segundo a qual tendências que herdei de minha mãe - sobriedade, senso de responsabilidade, devoção ao trabalho, à ordem e à normalidade - podem ser comparadas com os muros duma cidadela sitiada e repetidamente atacada por insidiosos e alegres bandos de guerrilheiros constituídos por certos componentes do caráter de meu pai: sensualidade, auto-indulgência, inclinação para o ócio e para uma espécie de hedonismo irresponsável.
"Mas a coisa não é assim tão simples e nítida" - observa o Outro - "Eu sei, eu sei" - respondo em pensamentos - "mas vamos adiante, companheiro. É pelos sendeiros do erro e da dúvida que havemos de chegar um dia ao reino da verdade".

quinta-feira, 1 de março de 2012

Dostoiévsky - O Duplo

Cumpriam-se plenamente todos os seus pressentimentos; tudo o que havia temido, tornava-se realidade. Faltou-lhe o alento, e sentiu um vácuo na cabeça. O desconhecido ali estava, sentado na sua frente, também com o chapéu na cabeça e a capa nos ombros. Ria mansinho, olhava para ele, e fazia acenos amistosos com a cabeça. Goliádkin quis gritar, mas não pôde, quis protestar contra aquilo, mas faltaram-lhe as forças. Quedou-se de pé, rígido de espanto, de cabelos eriçados em frente do intruso. Tinha razão para isso. Havia reconhecido o seu visitante noturno, amigo e inimigo ao mesmo tempo. Não era outro senão ele mesmo... O homem que avistava, a rir para ele, era o próprio Goliádkin, a sua imagem, a sua figura, a sua personalidade em todos os sentidos. Mais do que um sósia, era o seu duplo, o desdobramento dele mesmo.